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"Lapso"

Uma pedra e um homem: não há, empiricamente falando, contrários mais distantes e mais próximos; mais vertiginosamente próximos.
Eis o intervalo abissal que reside no homem sem que este o possa habitar. Intervalo da contradição íntima, à beira, sempre, da petrificação.
Para o mostrar, esse intervalo, um homem aproxima-se de uma pedra que o ultrapassa em todos os sentidos. Pedra informe, inapreensível, inamovível, insustentável pelo corpo de um só homem. Ainda assim, parece que o seu tamanho e (vagamente) a sua forma mantêm uma relação com o corpo de um só homem sem que este pretenda conhecê-la — seja de que maneira for: analisá-la e classificá-la; medi-la ou pesá-la. Apenas procura acompanhá-la, alguns passos atrás, durante o máximo de tempo possível.
A pedra abre, abre lentamente o caminho do homem que é feito de tropeções (alavancas, calços, mãos antigas, calhas, uma carga de trabalhos…). O homem dispõe-se a esperar, alguns passos atrás, o tempo que for preciso para acompanhar a pedra, o mesmo tempo em que se esquecerá dela.
Faz isto toda a vida — espera, esquece; por vezes, num lapso de tempo que nunca conseguirá medir, sente que foi conduzido pela pedra ao lugar onde ele se encontrava como se tivesse de procurar o caminho para chegar onde já está (são palavras de Blanchot, no livro justamente intitulado L’attente l’oubli). Ou como se, nesse mesmo lapso, fosse pedra imóvel durante a noite. Então, o homem não sobe nem desce — plana somente — e dessa planura não haverá imagem. O lapso é inimaginável, e o caminho está livre de obstáculos.
O homem dirá que a sua vida é um «lapso» («acção de tropeçar», de labi — «deslizar, cair» — oriundo talvez de labor: de «trabalho» — ou será de «carga sob a qual se vacila»?). Lapsus é aquilo que corre vagarosamente à sua frente, sem se objectivar.
A vida, um lapso — de tempo, de memória, durante a espera. A pedra, antes e depois deste homem, permanece imaculada.

MAIA, Tomás. Janeiro de 2008