Desenhar a ruína
No exterior do Uma Certa Falta de Coerência, na Rua dos Caldeireiros, através da porta, consegue ver-se uma linha de colunas negras. Uma intervenção minimal dir-se-ia logo de imediato, tal o rigor da intervenção. Contudo, esta conclusão só é possível para quem tenha visitado anteriormente o espaço, porque, de facto, aqueles pilares de madeira, entalados entre o chão e o tecto, podiam pertencer àquele lugar desde sempre; terem nascido ali, para manterem de pé uma casa em avançado estado de degradação. Sim, a intervenção de António Bolota (Benguela, Angola, 1962) transforma as salas da exposição, sublinhando, contudo, uma situação preexistente,vinculada à própria essência do lugar e, por extensão, à zona histórica da cidade: o trabalho do artista faz emergir a condição de ruína ali latente, fazendo lembrar desastres passados e anunciando uma catástrofe por vir, entendendo-se esta também na sua dimensão política.

Entre-se então no espaço: uma métrica regular – a tradicional grelha modernista – é-nos dada pela localização de uma série de colunas em madeira queimada. A superfície das barras possui uma textura que anula qualquer leitura minimalista: vistas de perto, elas revelam rugosidades, escamas, brilhos prateados e cheiram ao fogo que, em parte, as consumiu. O trabalho de António Bolota aproxima-se do quotidiano, afastando-se dos pressupostos da “arte pela arte” e aproximando-se de questões relacionadas com o desenho. A intervenção no Uma Certa Falta de Coerência faz um desenho e desenha, porque cada barra, agora transformada em carvão, pode inscrever no corpo de cada visitante um traço, uma mancha, uma inesperada marca na superfície das mãos. Esta é outra das características desta obra: ela “suja” quem dela se aproxima, uma situação por vezes difícil de evitar.
O percurso através das salas revela ainda outras situações trabalhadas pelo artista, como um ambiente homogéneo, denso, criado com uma subtil intervenção na luminosidade do espaço. Há ainda o acaso de a métrica escolhida ter feito com que um dos pilares bloqueie uma das portas interiores do Uma Certa Falta de Coerência. Todos estes acontecimentos revelam uma série de paradoxos: por um lado, o facto das colunas, queimadas, negras, darem um sentido de ordem a um lugar em risco eminente de desabar; por outro, a ilusão de serem estas barras verticais que sustêm o tecto; finalmente, a sensação de ser ter passado ali algo – um incêndio, por exemplo –, que, na realidade, nunca chegou acontecer.

Esta é uma instalação “in situ.” E deve ser experimentada, percorrida, de modo a que, quando se regressar novamente ao exterior, se perceba o alcance desta obra: basta olhar para as casas vizinhas ou para quem passa na rua. Aqui não há redenção possível, apenas “ corpos-fantasmas” – imagens de um tecido social em colapso – e habitações que encenam a sua própria despedida.

António Bolota consegue uma vez mais traduzir visualmente as suas preocupações éticas, numa intervenção consistente. Se Alberto Carneiro propõe uma reflexão acerca do modo como a árvore se constitui enquanto segunda natureza no território da arte, activando essa meditação através, por exemplo, da instalação “Uma Floresta para os teus sonhos” (1970), obra que convida o espectador a reencontrar-se com a sua essência, Bolota, pelo seu lado, procura antes colocar em relevo a forma como esse sonho está cada vez mais distante, sendo, por isso, um trabalho muito mais materialista do que o de Carneiro. Contudo, a dúvida persiste: existirá uma dimensão espiritual na sua obra? E embora se possa afirmar ser o aspecto formal que sobressai nesta peça – a relação com a arquitectura envolvente é outro dos dados relevantes para o processo de trabalho do artista –, este, não nos podemos esquecer, reflecte o contexto urbano e social envolvente.

Óscar Faria
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