O que está do lado de lá
Um muro é um limite, uma parede, uma barreira para o corpo e para o olhar. É também uma linha de demarcação entre campos, uma fronteira. Os muros são construídos a partir do chão porque a sua natureza é a de se erguerem a partir do solo e estabelecerem a sua função de impedimento e de limite para a visão. Os muros são autoritários porque impedem a circulação, são marcas de finitude. Por fim, os muros são como esculturas: têm a mesma carga funerária, a mesma compulsão para a movimentação do nosso corpo que tem de os contornar, de os avaliar, de os medir. Também poderia dizer que os muros são como arquitecturas. Melhor, são a origem de qualquer arquitectura, são proto-modelos arquitectónicos, como se a arquitectura descesse até um ponto no qual o que é importante é o gesto acumulativo, o que se coloca um por cima do outro, a adição de uma camada mais que vai definir uma altura, uma relação com o chão (com o território) ou com o espaço, ou com o corpo.
Há muitos tipos de muros: os que delimitam um campo, os que se erguem perante nós como uma fronteira, os que se passam com a agilidade de um salto, os que são organizados como uma trama, os muros a que chamamos muralhas, os que são o resultado de acumulações mais ou menos aleatórias ao longo do tempo, os que são desenhados com requintes de arquitecto, os que são falsos muros porque são só fronteiras políticas, os que são verdadeiros e também são fronteiras políticas, os de Berlim, os da Palestina, os sociais, os virtuais e o muro de António Bolota.

O muro do António Bolota é falso. Melhor, é verdadeiramente falso. Quer dizer que é um muro dentro de uma convenção de sistemas estéticos, éticos, cognitivos, afectivos e sociais, dentro de uma galeria de arte. Em termos técnicos e estéticos, é de uma enorme complexidade: é um muro suspenso, pedra sobre pedra, assente sobre uma viga de aço embebida na parede, que divide um espaço expositivo. Em termos construtivos, para quem passe algum tempo entre as matas do Caramulo e as Beiras, é um muro familiar. É uma acumulação de pedras que assentam umas sobre as outras, fazendo do peso a sua coesão. É um muro que não cede à arquitectura, porque o espaço que divide é um espaço de representação e, nesse sentido, é um muro que representa a presença de si mesmo sublinhada pela sua extática levitação: afastado do chão, assente sobre a viga que o alteia, este muro fala da sua condição física de peso, fala da sua gravidade a partir de um enorme esforço de imponderabilidade. Vencer a força da gravidade é uma das características do seu trabalho e, simultaneamente, é também uma das componentes essenciais da história da escultura a partir do momento em que esta se libertou da história da estatuária, tendo efectuado uma das mais fortes clivagens no interior da modernidade: em primeiro lugar, abandonando o plinto, em segundo lugar deixando cair a antropomorfia e, em terceiro lugar, tornando-se absolutamente figurativa para se afirmar como intenção para além da representação. Este paradoxo (este oximoro, como dizem os anglo-saxões) encontrou na escultura moderna inúmeros eixos de acção: com Rodin, Giacometti, com Tony Smith, com Richard Serra foi-se estabelecendo uma possibilidade de legitimação da escultura a partir, não do objecto escultórico, mas da sua massa -- portanto, da gravidade, ou seja da força de atracção das coisas pelo chão, ou pela terra.
Este tem sido o campo de actuação de António Bolota, pelo menos de duas formas distintas: localizando o seu trabalho como uma actuação face a forças que nos ultrapassam (a gravidade, o equilíbrio dos corpos, a massa), mas simultaneamente como uma operação subtil a partir dos recursos de manobra destas forças (da engenharia) que permite afirmar uma poética do espaço e dos corpos que nele se movimentam. O que é particularmente curioso é que existem duas afirmações aparentemente contraditórias no enorme poder das suas esculturas: por um lado, a afirmação da corporalidade que as reconhece como esculturas porque uma solidez se sobrepõe à fragilidade do corpo. Por outro lado, uma capacidade de fazer o corpo que com elas se confronta encontrar a sua sublimidade face à inquietante instabilidade das suas contradições: um poliedro que desce das alturas e quase toca no chão numa enorme delicadeza, uma casa que se desloca no seu eixo revelando o fosso entre a estrutura do espaço e a sua vivência, uma tensão de um peso sobre um eixo. Uma tensão, finalmente, entre um detalhe e um todo, entre uma força que nos rege – a todos, inexoravelmente – e uma ousadia que representa uma crença humanista na individualidade.
Poderíamos comparar a escultura de António Bolota a uma ideia de individualidade, do um contra o mundo, contra as forças da natureza ou contra a regra, que é o centro do grande cinema. Podemos, também, imaginar que se trata exactamente do contrário: de fazer vir à tona a possibilidade que as regras da física fornecem de serem paradoxais, porque a sua performatividade pode sempre tolerar uma força contrária e essa é a natureza do mundo. Nesse sentido, as suas esculturas possuem um eco épico, como o confronto com uma grande força, uma sobreposição da grande arte da manipulação, uma prestidigitação em torno da performance da força e da resistência, da atracção entre os corpos, do peso e da leveza.
Portanto, o seu muro é uma contradição nos termos, é como um impedimento que faz vir à superfície a sua natureza de limite, porque, pela flutuação, ostenta o seu peso.
É um muro romântico, não só porque afirma o seu contrário, mas porque simultaneamente se reafirma a si mesmo, contraditório, inútil e determinante na forma como nos tolhe o olhar, os passos e a percepção racional das forças,
Finalmente, o muro de António Bolota é uma operação sobre o tempo. Um muro é uma realidade perene, sobretudo quando é feito de pedra e aço, quando a sua matéria é a das grandes obras – e, nesse sentido, efectuar uma operação efémera a partir da matéria da perenidade só pode ter uma conotação irónica, ou então ser oriunda de uma afirmação de poder.
Não creio que, nem uma nem outra constituam os seus motivos: talvez seja a afirmação da ars, antes da arte, como a técnica que revela alguma coisa. Talvez seja o fascínio pelo poder do indivíduo face às grandes forças, ou a sua capacidade de com elas jogar. Talvez seja a capacidade de estabelecer uma poética a partir da subversão da brutalidade, ou tudo isto.
O que sei é que o seu muro é uma afirmação física do poder da escultura agir sobre o corpo, torná-lo frágil e fazê-lo reconhecer a sua fragilidade, de se situar num tempo paradoxal, entre o efémero da experiência e a inutilidade da grandiloquência, de fazer vir à tona o peso, de produzir uma vivência da corporalidade.
Este é o campo onde a matéria, a cognição e a sensação se cruzam com a prestidigitação. E nós, frente a ele, parados.


Delfim Sardo, Lisboa, Agosto de 2010
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